Page 71 - Fios do tempo
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Paraty, 10 de julho de 2025.


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                       Sinto  que  nossas  almas  se  reconhecem  mesmo  separadas  por  séculos  e
               pela dor que nos persegue. Meu nome é Yara Caiapó, tenho dezenove anos e vivo
               no  Quilombo  do  Campinho,  localizado  em  Paraty,  cidade  que  você  conhece  tão
               bem, minha amiga.


                       Como você sabe, os quilombos são lugares criados por pessoas negras que
               conseguiram  fugir  da  escravidão.  Foram  espaços  de  liberdade,  onde  os
               escravizados  podiam  cultivar  suas  tradições,  trabalhar  coletivamente  e  cuidar  da
               terra. Eles existem até hoje, como um símbolo de resistência, agora de forma livre,
               não  mais escondida. As casas são feitas de taipa de pilão, madeira e palha. São
               simples mas cheias de histórias de resistência. Dançamos o jongo, cantamos para
               nossos  ancestrais,  cultivamos  hortas,  celebramos  festas  tradicionais  e mantemos
               viva a memória de quem veio antes de nós, vocês escravizados. Nosso quilombo é
               liderado por mulheres negras, o que inspira cada um que mora aqui a esquecer os
               vestígios deixados pela sociedade patriarcal do período colonial.

                       Eu estava dançando jongo, em uma sexta-feira qualquer, quando, de repente,
               o cenário mudou. Ao invés de estar no quilombo, onde eu dançava, estava nas ruas
               centrais  de  Paraty, mas ninguém me via ou me escutava, foi quando percebi que
               tinha voltado para o período colonial. Observei ao redor e vi uma mulher, que me
               chamou atenção, era você.

                       Acompanhei  você,  Nala,  para  ver  como  eram  os  seus  dias.  Você  acorda
               cedo,  antes  do  sol  nascer,  quando  o  ar  ainda  tem  o  cheiro  da  brisa  do  mar
               misturado com fumaça das cozinhas e o aroma da cana. Seus braços se esticam, e
               você se alonga, o corpo sente o peso de mais um dia de trabalho exaustivo, mas
               seus passos seguem firmes.


                       Primeiro, você cuida das tarefas dentro da casa grande. Varre o chão, limpa
               as janelas com detalhes de abacaxi que brilham ao sol, organiza os utensílios que
               ninguém mais toca. Depois, vai carregar melado, rapadura e outros produtos pelas
               ruas  de  Paraty,  observando  os  viajantes,  o  porto  cheio  de  barcos  e  o  ouro  que
               passa rápido pelas mãos de pessoas que não o merecem.

                       Em meio a toda essa luta todos os dias, você encontra pequenos momentos
               de  alegria. Kofi, cachorrinho de seus donos, corre ao seu lado, trazendo sorrisos,
               você  observa  as  crianças  brancas  brincando  pelas  ruas  e,  às  vezes,  consegue
               ensinar  palavras  ou canções que lembram sua terra no Congo. Entre um gesto e
               outro  sussurra  silenciosamente  pequenas  histórias  africanas,  mantendo  viva  a
               memória do seu povo.



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