Page 52 - Fios do tempo
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Ayana Saidi (escravizada do século XVIII)
Sou Ayana Saidi, tenho trinta e seis anos e sou uma mulher escravizada de
ascendência africana. Nasci no dia 10 de outubro de 1718. Sou morena. Tenho
cabelo castanho escuro, que na maioria das vezes, uso preso com minhas
bandanas. Meu cabelo é volumoso, crespo, minha identidade. Tenho uma cicatriz,
ao lado dos meus lábios rosados, e diversas marcas de trabalho pesado ao redor do
meu corpo. Sempre visto panos e tecidos leves, para facilitar no trabalho. Acredito
que também devo ter uma aparência cansada. A labuta por aqui demanda muito
esforço, mas, meu olhar é de esperança. Se há uma coisa que a vida me ensinou, é
que tudo é possível, inclusive um dia conquistar minha liberdade.
Moro em uma casa bonita e luxuosa em Paraty. Ela possui influência do estilo
colonial português, baixa e larga. Sua frente é branca, e o telhado é marrom escuro.
Nela, há janelas altas, grades de ferro e altas portas de madeira escura. Os beirais
são largos e há detalhes de pedra em volta das janelas e portas. Infelizmente, não
usufruo do luxo da residência em que moro, pois sou apenas uma escravizada.
Durmo amontoada junto com outros escravizados, passo muito calor. Há vários dias
em que não consigo tomar banho e, quando posso fazer isso, o tempo é curtíssimo.
A minha rotina é sofrida, assim como a de todos ao redor de mim. Ver
mulheres negras, assim como eu, gerando filhos para serem futuros escravizados é
de partir o coração. Amo cozinhar, desde pequena, então, quando meus senhores
estão distraídos, aproveito para ir vender alguns dos doces que preparo, para
ganhar algum dinheiro.
Todos os dias, durmo pensando em fugir daqui. Como será que deve ser
viver livremente? Porém, não é simples. Não tenho coragem de tentar escapar, mas
tentarei em algum dia do futuro. Tenho certeza disso, só preciso de um sinal. Raras
vezes, alguns tentam fugir. A maioria não consegue. Meus senhores são muito
rígidos e colocam funcionários para nos vigiar o tempo todo. Mesmo assim, há
quilombos espalhados pelas terras colonizadas pelos portugueses.
Trabalho para Dom Henrique de Albuquerque, um dos nobres portugueses
mais temidos. Ele leva seu trabalho com pura seriedade, sempre preocupado em
garantir recursos e elegância para sua família. Sua esposa, Dona Isabel, é a dama
da corte. Exala elegância e autoridade, mas também sofre por causa da cultura
patriarcal, na qual os homens controlam a família e a sociedade.
O casal possui um filho, chamado Afonso. Jovem ostentador e ignorante.
Infelizmente, passo mais tempo com ele do que gostaria, já que seus pais o obrigam
a trabalhar comigo no porto, onde o ouro, vindo do interior da colônia, é embarcado
para chegar até Portugal e enriquecer os cofres do rei absolutista. Também trabalho
em lavouras.
A tristeza surge em mim só de lembrar a razão pela qual pessoas como eu
têm de sofrer e viver assim. A vida não foi justa conosco, fomos rejeitados antes
mesmo de aprender a falar. Nascemos assim, “diferentes” daqueles que se dizem
superiores a nós, os europeus.
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