Page 55 - Fios do tempo
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escravista, em que, mesmo fazendo um bom trabalho no comércio, foi arrastada de
uma vez só por seus senhores.
No meio de tantas pessoas andando pelas ruas de Paraty – onde os
escravizados eram a minoria, pois tinham de ficar em cativeiro ao invés de andar
por lá, me encantei por você, aquele brilho no rosto junto com toque de esperança
despertou em mim curiosidade de lhe conhecer melhor.
Eu segui você para ver qual era a situação que se encontravam os
escravizados trabalhando no casarão de seus senhores. O lugar era lindo, mas não
consegui ficar por muito tempo lá – o sofrimento era tanto que eu não estava pronta
para presenciar aquilo com meus próprios olhos.
A minha curiosidade aumentava a cada dia. Aos poucos fui conseguindo
observar mais o modo de vida de todos os escravizados, olhando tudo aquilo com
muita angústia. A forma que vocês dormiam na senzala era algo extremamente
chocante – como alguém teria a coragem de construir um quarto abaixo de sua
casa, onde dormiam pessoas amontoadas?
Outra coisa que não era o forte do local: a falta de higiene. Vi que todos não
tomavam banhos com frequência, e, quando podiam fazer isso, tinham que ser
muito rápidos.
Acho que uma das piores coisas que vi foi a situação das mulheres em
relação aos filhos – elas tinham de gerar crianças que logo se tornaram
escravizados e seriam separados de suas mães. Era de cortar o coração.
Observando especificamente você, vi suas características específicas e
marcantes – seus volumosos cabelos pretos e crespos, que, com encanto,
balançavam de um lado ao outro conforme o vento batia. Observei seus grandes
lábios cor de pêssego; também não tinha como não reparar nas cicatrizes que você
carregava em seu corpo por causa do trabalho pesado. Além disso, percebi que sua
paixão era cozinhar, e também tinha um grande dom para isso, tanto que vendia
quitutes para dar lucro aos seus senhores, mas que lhe permitia acumular uma
pequena renda.
Dom Henrique de Albuquerque era seu proprietário. Homem de assustar –
era extremamente rígido quando o assunto se tratava dos seus escravizados. Tinha
sua amada esposa Isabel e também o laço desse relacionamento: o jovem filho
Afonso.
Nas conversas que escutei, ouvi coisas tão tristes que desabei a chorar,
mesmo que ninguém pudesse me ver, me escutar ou me sentir. Por meio delas,
soube que todos haviam sido trazidos à força pelos europeus, obrigados a saber
falar a língua de Portugal, abandonar suas crenças e se tornar fiéis à crença
católica. O aprendizado de vocês sobre o português foi o que me permitiu entender
o que falavam, pois quando se comunicavam em suas línguas nativas, era difícil de
entender o que diziam.
Quando passei por perto das lavouras, vi vários escravizados mentindo para
os seus senhores sobre doenças que supostamente tinham, mulheres traçando
rotas de fuga em suas cabeças através das tranças. No meio de tudo isso, lá estava
você também praticando atos de rebeldia. Consegui ver, no fundo de seus olhos,
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