Page 60 - Fios do tempo
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Maria das Dores Silva ( quilombola atual )
No coração do Quilombo do Campinho, em Paraty, no estado do Rio de
Janeiro, é onde vivo. Sou Maria das Dores Silva, mulher negra de trinta e oito anos,
cuja alma pulsa com a força ancestral do meu povo. Todas as manhãs, desperto
com o primeiro canto dos pássaros, envolta pelo cheiro da terra molhada e pelo
silêncio reverente da mata. Minha casa, simples e aconchegante, não é apenas
abrigo - é testemunha viva de gerações que resistiram, sonharam e sobreviveram.
Ao pisar descalça no quintal, sinto o chão como extensão do meu corpo.
Cuido com carinho da minha hortinha, onde crescem temperos, milho e plantas
medicinais - não apenas alimentos, mas memórias vivas da minha avó, que me
ensinou que cada folha tem uma história, cada raiz carrega cura, e cada gesto é
uma oferenda à ancestralidade.
Desde menina, recebi a inspiração dos cantos, tambores e histórias contadas
à luz de lamparinas. Cresci com o coração inflamado pela beleza das festas, dos
rituais e da resistência que ecoava em cada dança e em cada silêncio. Carrego,
com orgulho e dor, o peso e a honra de ser guardiã de uma cultura que o mundo
insiste em esquecer - mas que eu me recuso a deixar morrer.
Na minha casa, vivem também minha mãe Rosa, mulher de fala firme e olhar
profundo, que guia nossa comunidade com sabedoria ancestral. João é meu irmão
adolescente, que vibra ao som do tambor e busca, nas raízes culturais, a força para
construir seu futuro. Maria Luiza é minha vizinha e amiga, que transforma palha e
barro em arte e memória.
Durante o dia, me entrego com paixão às crianças da comunidade,
ensinando não apenas tradições, mas identidade. Cada história que conto é uma
semente de resistência. Cada gesto, uma afirmação de que o quilombo vive - e
viverá. À noite, me recolho nos rituais de matriz africana, onde encontro abrigo
espiritual, força e reconexão com os ancestrais que me guiam.
Sou uma mulher de presença forte, com cabelos crespos, que uso como
coroa, e pele escura, que brilha como testemunho de luta. Não apenas me orgulho
de quem sou - me recuso a ser invisível. Minha voz é firme, minha esperança é
teimosa e meu amor pela comunidade é visceral. Acredito que a cultura quilombola
é um farol, e que nós, mulheres negras, somos pilares de um Brasil que ainda
precisa aprender a nos olhar com respeito e reverência.
Minha história é feita de resistência, mas também de ternura. É feita de dor,
mas também de beleza. Não quero apenas preservar minha cultura - quero que o
mundo me escute, me veja, me celebre. Porque enquanto houver memória, haverá
luta. E enquanto houver luta, haverá vida.
Gabriel P. A. Madureira, Gustavo Pessin Banietti,
Nicolas Alves Machado e Raul M. B. Portella
Colaboração de Manuela Rodrigues Mota
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