Page 62 - Fios do tempo
P. 62
Paraty, 15 de setembro de 2025
Querida Anansi,
Mesmo separadas pelo tempo, sinto sua presença me atravessando a pele,
como um vento que vem de longe e ainda sussurra nomes que não queremos
esquecer. As correntes que marcaram sua vida ainda ecoam hoje, em cada
lembrança que nos toma pela mão, em cada cicatriz que nos lembra que a liberdade
não foi conquistada de uma vez, mas lutar dia após dia, com suor, dor e coragem.
No Quilombo do Campinho, seguimos plantando, cantando e celebrando,
como você sonhou. Cada semente lançada no barro, cada raiz que brota sob o pôr
do sol, carrega a sua força invisível. As rodas do batuque ressoam com a sua voz,
que já não é apenas voz, mas memória viva de resistência. Quando as crianças
aprendem as histórias de nossos antepassados, vejo em seus olhos a chama que
você acalentou quando ninguém acreditava que nós poderíamos sonhar um futuro
justo.
A sua dor não permanece apenas como tristeza; ela se transmuta em uma
bússola de luta. Sua coragem em enfrentar a violência, a brutalidade do cativeiro, a
desumanização diária virou uma fonte de orientação para nós. Hoje, quando as
mãos se aproximam para semear, quando o tambor chama as vozes, é você quem
nos guia: Anansi, a coragem que plantou uma semente de identidade, de dignidade
e de autossuficiência entre nós.
Sua memória, Anansi, tornou-se a nossa esperança. Cada fibra do nosso
tecido social carrega o peso do que você resistiu e do que ainda precisamos resistir.
A nossa memória não é apenas uma lembrança do passado. É um compromisso
com o presente e com o futuro: manter viva a memória de cada escravizada que
ousou sonhar com liberdade, honrar a dignidade de cada uma que resistiu ao
silêncio imposto, e celebrar cada gesto de autonomia que nos permite hoje escolher
nossas próprias histórias.
Você não foi esquecida, Anansi. Caminha conosco em cada passo que
damos, nas decisões que tomamos, nos laços que fortalecemos entre as pessoas,
nas vozes que se erguem para exigir justiça. Sua presença se faz no cuidado com
as crianças que aprendem a cantar nossos cantos, na forma como cuidamos umas
das outras, no cuidado com a terra que nos sustenta e que também nos recorda de
onde viemos. Caminha em silêncio, às vezes, como uma sombra protetora, e às
vezes com a insistência de uma chama que não permite retrocesso.
62

