Page 61 - Fios do tempo
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Anansi da Costa (escravizada do século XVIII)
Sou Anansi da Costa, mulher negra de 25 anos. Carrego em meu corpo e em
minha alma as cicatrizes de um mundo que tentou me apagar — mas falhou. Nasci
no continente africano e cresci entre fios e cores, aprendendo, com minha família de
tecelões, que cada trama é uma forma de contar a história dos que vieram antes de
nós. Minha infância foi feita de cantos, de mãos habilidosas e de fé nas forças que
habitam a terra e o céu.
Aos dezenove anos, o chão se rompeu sob meus pés. Fomos invadidos por
pessoas que representavam o rei de Portugal, que, visando aumentar a renda de
seu país, começou a nos tratar como mercadorias. O terror tomou forma nos gritos,
nas chamas e nas correntes. Eu, minha mãe e minha irmã fomos capturadas. A
travessia no navio negreiro pelo oceano Atlântico, para terras conquistadas também
pelos portugueses, foi um mergulho no inferno: o cheiro da morte, o silêncio dos que
não resistiram, e o último olhar da minha mãe antes de partir para o mundo dos
ancestrais. Minha irmã foi vendida antes de mim, em uma região que eu não
imaginava onde se localizava. Nunca mais a vi.
Eu fui trabalhar para colonizadores em uma casa em Paraty. Caminho com
dignidade. Recuso a conversão imposta pelos europeus, mantendo viva a
espiritualidade ancestral que me sustenta. Canto para os mortos, danço para os
vivos e oro para os que ainda virão. Mas faço tudo isso escondida, pois, tenho que
fingir que sou católica. Caso contrário, posso ser presa. Quando posso, sem que os
brancos percebam, ensino, nas ruas de Paraty, aos mais jovens descendentes de
africanos sobre suas raízes históricas. E sonho com o dia em que minha gente
poderá viver sem medo, sem correntes, sem perseguição.
Sou mais que sobrevivente. Sou guardiã. Sou chama que não se apaga.
Minha história é feita de luto, mas também de luta. Enquanto houver voz, haverá
liberdade.
Gabriel P. A. Madureira, Gustavo Pessin Banietti,
Nicolas Alves Machado e Raul M. B. Portella
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