Page 54 - Fios do tempo
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Paraty, 11 de julho de 2025.

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                       Quando  andava  pelas  ruas  de  Paraty,  em  1771  –  o  mesmo  lugar em que
               moro em 2025, senti um choque de realidade. Já sabia que os meus antepassados
               sofriam muito com a escravidão. Porém, o que eu não sabia era a intensidade desse
               ato de submissão dos escravizados aos seus senhores comandantes.
                       Andava sem rumo, chocada com o que estava presenciando bem na minha
               frente. Enquanto “passeava”, desolada, lhe avistei, querida Ayana. Você estava com
               um brilho nos olhos, finalizando a última venda de quitutes do dia. As ruas de Paraty
               estavam iluminadas pelos últimos raios de sol. Senti a esperança em seu olhar, que
               me fez sentir o mesmo.
                       Em meio a tudo aquilo, sentindo toda a dor da escravidão, sem nem ser vista,
               ainda consegui ficar feliz, só de ver a sua feição durante aquele momento.
                       Porém,  em  alguns  segundos,  a  felicidade  foi  levada  para  longe.  Observei
               cada expressão sua mudando, por estar sendo arrastada de volta para a casa dos
               seus  senhores  e  sendo  obrigada  a  cozinhar  incansavelmente  para  eles,  sem
               nenhum tipo de pagamento ou recompensa.
                       Eu  sei  que  tudo  isso  está  sendo um pouco confuso pelo fato de que você
               nem me viu; porém eu estava lá.
                       Foi  em  um  domingo,  estava  entardecendo,  os  meus  colegas  do  quilombo
               estavam arrumando tudo para descansar, mas em meio de toda aquela sensação
               de conforto de fim de dia, eu sentia algo que tenho certeza que mais ninguém sentiu
               –  vinha  um  arrepio  percorrendo  a  minha  espinha,  junto  de  uma  sensação  de
               presença divina vinda do jarro que meu falecido pai havia me dado. Era um artefato
               que me fazia lembrar de sua alegria contagiante, eu o amava.
                       Aquilo estava me deixando muito curiosa e, então, decidi abrir aquele jarro –
               o meu pai me disse uma vez que, não deveria fazer isso, pois haveria o momento
               certo.  Mas  o  meu  coração  e  minha  alma  pediam  para  que  eu  seguisse  minha
               intuição.  Tirei  a  tampa  do  jarro  com  cuidado,  como  se  mexesse  em  um  objeto
               sagrado.
                       Quando  observei  dentro  do  pote,  vi  um brilho alaranjado ofuscante – senti
               minha  retina  queimar.  Desmaiei.  Não  sei  o  que  aconteceu  depois.  Acordei
               desnorteada sem saber onde estava, olhei ao redor – era uma rua muito familiar…
               Estava em Paraty! Mas como aquilo era possível? Tudo parecia muito antigo, então
               decidi consultar o ano no primeiro calendário que avistei, era o ano de 1771. Estava
               perdida, pois tudo era muito diferente, então decidi ir até uma mulher – falei com ela
               diversas vezes e fiz gestos diferentes, mas foi só aí que entendi… como aquele era
               o período colonial, eu havia viajado para o passado através daquele jarro e ninguém
               conseguia me ver!
                       Foi  nesse  momento  em  que  a  vi,  Ayana  –  você  era  uma  bela  mulher,
               radiante,  mas  com  um  semblante  triste.  Observei  cada  movimento  que  fazia,
               enquanto  ela  vendia  seus  quitutes  com  perseverança,  mesmo  dentro  do  regime


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