Page 90 - Fios do tempo
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Paraty, 5 de setembro de 2025.
Querida Abayomi,
Meu nome é Zola Nkosi, tenho dezoito anos e moro no Quilombo do
Campinho.
Você não me conhece, mas nossos destinos se entrelaçam nos fios invisíveis
da história. Minha época carrega suas dores, mas diante da sua, são ecos distantes.
Minha cor e minha descendência é o meu ser, é a essência que me sustenta. Minha
voz é uma batida que ecoa sem fim, que nunca se cala.
O que antes você só via pela janela, agora está ao seu alcance.
Você carrega as suas feridas, mas nelas pode encontrar a liberdade. A
liberdade é permitir-se sentir, sofrer e, ainda assim, se curar.
Hoje eu moro no Quilombo do Campinho. É um lugar pequeno, escondido
entre árvores e caminhos de terra, mas para nós, é um mundo inteiro. Aqui, vivemos
juntos como uma grande família, com raízes profundas que resistem ao tempo, à
dor e ao esquecimento. Caminhar por essas terras é sentir o eco de quem veio
antes. Cada pedra, cada trilha, cada casa de barro e madeira carrega a lembrança
dos que lutaram para que a gente pudesse estar aqui agora, vivos, livres e em pé.
Às vezes, quando o sol se põe e o silêncio toma conta do quilombo, eu fico
imaginando como era no seu tempo. Penso nos gritos presos na garganta, nas
marcas nas costas, nas correntes no pés. Penso nas mães longe dos filhos, de
várias famílias separadas que não puderam viver ou continuar sua história. Por mais
que eu viva num lugar simples, eu sei que você não teve o mesmo direito de casa e
liberdade como eu. Enquanto eu durmo num quarto com meus irmãos, cercada de
afeto, você talvez tenha dormido no chão duro com frio, medo e sobre ordens.
Mas, mesmo com toda a dor, você resistiu. E por causa de você eu existo. O
Quilombo do Campinho não é só onde eu moro, é onde sua lua continua viva. A
cada dia que eu acordo é uma forma de dizer: vocês não foram esquecidos.
A minha rotina hoje é tão diferente da que você viveu… e isso, às vezes, me
dá um nó no peito.
Eu acordo cedo, com o canto dos passarinhos e o cheiro do café que minha
mãe prepara. Toma banho com água limpa, Primeiro nós vamos para a agricultura,
cultivamos soja, milho, etc. Depois eu preparo o almoço de acordo com nossa
produção. Às 12h30 eu almoço com minha família. Às 13h eu levo meus irmãos
para a escola. Nós temos muitas atividades culturais em nosso quilombo, como
capoeira, danças e etc. Às 17h horas eu pego meus irmãos na escola.
Mas eu sei que, no seu tempo, o amanhecer era sinal de mais sofrimento.
Você talvez acordasse ainda no escuro, sem tempo para sonhar. Caso fosse criança
não havia escola, havia trabalho duro, castigos, silêncio. Em vez de aprender a
escrever seu nome, te obrigava a esquecer quem você era. Seus dias eram todos
iguais, marcados pelo medo e pela dor. Enquanto eu posso escolher o que eu quero
ser quando crescer, você foi impedida até de ser gente aos olhos deles.
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