Page 91 - Fios do tempo
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É cruel pensar que algo tão simples como brincar, rir, descansar eram direitos
               negados a você.
                       Por  isso,  cada  passo  que  eu  dou  hoje  carrega  o  peso  da  sua  história.  E
               também a sua força. Porque, mesmo sem liberdade, você plantou esperança.
                       Essa esperança eu carrego até hoje e é ela que me sustenta, e me sustentou
               até os dias de hoje. Eu espero que a igualdade chegue na vida das pessoas que
               vieram daqui para frente, e que todos nós possamos ter nossos direitos garantidos.
                       Mas ainda é difícil ser mulher, ainda mais negra no Brasil de hoje, porém nem
               se compara com a sua dolorosa época. Ainda somos caladas, oprimidas e muitas
               não têm seus direitos  estabelecidos. Hoje, no Brasil,   lutamos pela igualdade racial
               e  de  gênero.   Você  infelizmente  não  viveu  o  suficiente  para  ver  o  “fim”  da
               escravidão, 13 de maio de 1888.
                      Os  meus  irmãos  me  contaram  que  também  aprendem  sobre  os  nossos
               ancestrais  na  escola.  A  professora fala sobre a importância de conhecer a nossa
               origem, nossa cultura e nossa luta. Ela mostrou que o nosso povo é forte, inteligente
               e  cheio  de  sabedoria.  Eles  aprendem  que  antes  da  escravidão,  nossos
               antepassados  já  tinham  suas   línguas,  seus  conhecimentos,  suas  festas,  sua
               maneira de viver. Isso me faz sentir orgulho da nossa história, mesmo com tanta dor
               no caminho.
                       No  nosso  quilombo,  temos  muitas  conversas  com  os  mais  velhos.  Eles
               carregam dentro deles histórias que os pais e avós viveram, histórias de dor, mas
               também de coragem. Quando eles falam, o silêncio toma conta da gente. Os olhos
               enchem de lágrimas e o coração aperta. Mas, ao mesmo tempo, sentimos orgulho.
               Cada palavra é como uma semente que foi plantada lá atrás e agora floresce em
               nós. É a prova viva de que não nos calaram. Nós resistimos. Nós existimos.
                       Até  a  comida  que  comemos  é memória viva dos nossos ancestrais. Minha
               mãe  prepara  angu,  feijão  tropeiro,  banana  da  terra  frita…  E  quando  o  cheiro  se
               espalha pela casa, parece que os que vieram antes também estão ali, sentados com
               a gente na mesa. Cada sabor conta uma história. Cada prato é um abraço que vem
               de longe.
                        Alguns  dias,  vou  ao   terreiro do Quilombo. Lá, a gente canta, dança, bate
               tambor com coração. É difícil explicar, mas quando o tambor toca, algo dentro de
               mim  desperta  como  se  seus  ancestrais  estivessem  ao  nosso  lado,  sorrindo,  nos
               guiando  com  seus passos antigos e sempre sendo fortes para não acabar com a
               sua cultura. Me sinto protegida.
                       Ah, Abayomi, como eu queria poder te mostrar tudo isso. Te mostrar que o
               amor  vence  o  ódio.  Que  a  força  do  nosso  povo  não  morreu.  Que,  mesmo  com
               tantas feridas, conseguimos florescer.
                        Mas ainda há dor. Ainda há pessoas que tentam apagar nossa luz, calar nossa
               voz, diminuir nossa existência. Ainda há racismo, ainda há injustiça. Mas nós não
               baixamos  a  cabeça.  Nós  seguimos  em  frente.  Cantamos  mais  alto.  Escrevemos
               nossa  própria  história  com  orgulho.  Somos  resistência  que  sorri,  que  abraça  e
               sonha.




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