Page 86 - Fios do tempo
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pisamos naquele navio, ela ficou desidratada e não comia nada por minha causa, eu
               ficava com fome, e por causa disso ela me dava sua comida, na época eu achava
               que ela não estava com fome.
                       No 37º dia depois da nossa entrada no navio, quando eu acordei e ela não
               estava se mexendo, meu mundo desabou, eu tive depressão profunda, e tenho até
               hoje, mas meus filhos me alegram quando eu estou desanimada. Depois que minha
               mãe  morreu,  foi  mais  difícil  continuar  a  viagem.  O  corpo  dela  ficou do meu lado
               alguns dias, antes que seu corpo fosse jogado ao mar.
                       A viagem durou em torno de sessenta dias. Eu não falava com ninguém, só
               ficava com a minha boneca Abayomi. Comecei a comer muito pouco depois desse
               acontecimento, e eu agradeço muito a uma idosa, chamada Nala, que me apoiou
               depois   dessa perda horrível para uma criança de oito anos. O que me ajuda nos
               dias difíceis é a pulseira de sementes, do lugar de onde ela veio da África, que ela
               me deu.
                       Depois da chegada, nós fomos separados para casas diferentes.
                       Meus  donos, portugueses, são obcecados por ouro, só pensam nisso, eles
               não ligam para nenhum de nós, aliás nós somos objetos.
                       Os  meus  donos  são  o  Senhor  Afonso  Oliveira  Carvalho  Lima,  que  tem
               cinquenta e cinco anos, e sua esposa, a Senhora Catarina Oliveira Carvalho Lima,
               de  trinta  e  seis  anos.  Não  posso  esquecer  dos  seus  filhos,  que  são  três,  dois
               gêmeos e uma menina mais velha, a menina tem quinze anos e se chama Victoria,
               já os gêmeos têm sete anos, e se chamam Leonardo e Vicente.
                       Eles são nobres e são amigos do primo do primo do rei de Portugal.  Fico na
               casa  deles  durante  o  dia,  para  cumprir  minhas  obrigações.  À  noite,  me  dirijo  à
               senzala, que fica no porão e é um alojamento usado para encarcerar os escravos.
               Tem apenas duas janelas, com grades, uma no “quarto” dos homens e uma no das
               mulheres,  nós  a  utilizamos  para  esquecer  um  pouco  da  nossa  vida,  horrível,  e
               passar  o  tempo  mais  rápido.   Há  também  pequenos  buraquinhos,  mas  ninguém
               enxerga por eles, pois foram feitos só para circular o ar.
                       Somos  quarenta  e  seis  mulheres  e  vinte  e  cinco  homens,  além dos meus
               cinco filhos e os outros filhos das outras mulheres. As condições são precárias, o
               que  possibilita  a  proliferação de doenças. Nos últimos três meses, cinco meninas
               morreram e três homens também. Nós dormimos em cima de palhas colocadas no
               chão, ou diretamente no chão, eu durmo no chão para deixar as minhas palhas para
               os meus filhos. Nós comemos lá também.

                       A minha rotina diária é muito cansativa.

                       Eu  acordo  às  quatro  horas  da manhã, junto com as outras mulheres, para
               preparar  um  banquete  de  café  da  manhã  para  os  senhores.  Aos  sábados  e
               domingos, acordamos às três horas da manhã. Nós nos vestimos e vamos para a
               cozinha,  ficando  lá  até  às  dez  horas  da  manhã,  cozinhando,  lavando  pratos  e
               limpando a bagunça que os gêmeos fazem. O bom é que, logo depois, se for dia da
               semana, eles vão para a escola, mas quando é sábado ou domingo, passamos o


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