Page 88 - Fios do tempo
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para  a  religiosidade  de  origem  africana,  que  me  conforta  no  silêncio  da  noite,
               quando deito cansada e escondo minhas rezas no peito.

                       Os gêmeos chegam por volta desse horário. Depois, vamos para a cozinha
               fazer o jantar e ficamos, até nove horas da noite, cozinhando, servindo, lavando os
               pratos e limpando a bagunça. Depois, comemos a sobra de alimentos, mas como o
               almoço, se não sobrar, nós não comemos nada.

                       Geralmente, os restos eram poucos nutritivos e consistiam principalmente de
               farinha de mandioca ou milho, feijão, toucinho, miúdos de boi e porco, e frutas como
               laranja  e  banana.  Às  vezes,  quando  sobrava  carne,  como  pé,  orelha,  rabo  nós
               fazemos uma feijoada com os restos do feijão e a permissão da patroa, esse é o
               meu  prato  preferido.  Costumo  dar  minha  comida  para os meus filhos. Para mim,
               uma refeição por dia já me satisfaz. Vamos dormir às nove horas da noite.

                       Os  homens  passam  o  dia  carregando  ouro  para  o  porto,  para  que,  de  lá,
               fossem  levados  até  Portugal.  Minhas  meninas  mais  novas  ajudam  as  mulheres
               escravizadas, ou ficam no galpão brincando, mas as mais velhas já precisam ajudar
               nos trabalhos. Mas o meu filho já carrega muito peso, e é um dos mais fortes. Nos
               finais de semana, algumas mulheres cuidam dos gêmeos, e eles dão muito, muito
               trabalho.
                       A minha vestimenta é muito simples, um vestido branco, simples, grosseiro
               como algodão, mas que está sujo por conta do trabalho, bem sujo na verdade. Uso
               um lenço na cabeça para proteção contra o sol, eu tenho três desses, um branco e
               dois coloridos diferentes.

                       Às  vezes,  eu  uso  um  avental  que  os  senhores  dão,  mas  são  de  péssima
               qualidade e já estão desgastados. Eu tenho uma pulseira, que a Nala me deu, eu
               amo ela, sempre vai ser minha preferida. Nós usamos um chinelo simples marrom,
               que também está muito sujo.

                       Eu  choro  todas  as  noites  quando  lembro  da  minha  mãe  me  abraçando  e
               rasgando a roupa dela para fazer uma boneca Abayomi, que eu tenho até hoje, ela
               fica do lado do lugar onde eu durmo.

                       Além da minha mãe, eu lembro do meu amado, de como ele era protetor. Às
               vezes, eu penso em como seria a minha vida se nós não fossemos escravizados,
               ela  poderia  ser  feliz,  todos  nós  em  uma  casa  simples, não preciso de uma casa
               grande para ser feliz, pode ter poucos cômodos, mas muito amor.

                       Eu  sofro  com a dor da mãe de deixar os seus filhos viverem em uma vida
               assim, eles deveriam estudar, ter amigos, se apaixonar, mas não consigo oferecer
               isso. Acho que nunca vou conseguir ficar conformada em ver meu filhos com fome,



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