Page 87 - Fios do tempo
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dia  inteiro cuidando deles. O Senhor Afonso trabalha todos os dias e sua esposa
               fica  em  casa,  brigando  com  sua  filha.  As  discussões  são  feias,  e  nunca  são
               resolvidas .
                       Depois,  até  às  onze  horas,  ficamos  organizando  os  quartos.  Ao  meio  dia,
               voltamos para a cozinha para fazer o almoço, os gêmeos ficam de tempo integral na
               escola deles, já a Victoria não dá nenhum trabalho.

                       Os nossos senhores também deixam a gente comer a comida que sobra do
               almoço, mas quando isso não acontece, não comemos nada.

                       Depois, até às duas horas da tarde, nós conseguimos arrumar tudo, limpar os
               quartos,  banheiros  e  cozinhas.  Mas falta lavar as roupas e os lençóis, os nossos
               senhores não gostam de dormir duas noites seguidas com as mesmas roupas de
               cama.
                       Nós  ficamos,  até  três  horas  da  tarde,  lavando  e  secando  tudo. Ficamos a
               tarde inteira fazendo o que nos resta. Geralmente perto das quatro horas da tarde,
               eu fico observando pela janela, e vendo como a vida lá fora é tranquila e pacífica.
               Às  vezes,  eu penso que eu poderia viver o que eles vivem, mas isso nunca será
               realidade.

                       Eventualmente, por volta das cinco horas da tarde, circulamos pelas ruas de
               Paraty com supervisão dos nossos senhores. Mesmo sendo observada,  essa é a
               parte do dia mais legal.

                       Eu passeio, ouço, observo as pessoas nas ruas e parece que eu sou como
               elas, mas só tem alguns detalhes, a minha cor de pele, todos ficam olhando para
               mim,  parece  que  eu  sou  uma  alienígena  com  alguma  praga,  que  ninguém  pode
               tocar em mim, nós passeamos só quinze minutos por dia, no máximo.

                       O chão de Paraty é feito de pedras, que me conhecem bem. Já sangrei os
               pés  tantas  vezes  nelas,  que  hoje  caminho devagar, vigiada pelos olhos duros do
               feitor.  Não  é  liberdade,  é  só  um  pouco  de  caminhada  na  rua  que  nos  deixam
               praticar, sempre com a sombra deles atrás.

                       O  porto  vive  cheio:  ouro  que  vem  das  minas,  aguardente  que vai para os
               navios, gente que chega e parte sem olhar para nós. Eu só vejo trabalho: carregar,
               cozinhar, lavar, varrer. Aos cinquenta e quatro anos, já não tenho mais força como
               antes. Empurram-me para as tarefas de casa, onde o peso não é de pedra, mas de
               silêncio. Sinto que meu corpo é só memória de dor. Mas ainda guardo, dentro de
               mim, um resto de força.

                       Quando ouço o sino chamar, penso: não é o meu Deus que está ali. Eu não
               creio no Deus deles, que abençoa o chicote e a corrente. Meu coração se inclina




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