Page 26 - Fios do tempo
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Paraty , 30 de maio de 2025.
Dandara Nzinga,
Meu nome é Sofia Nsoki. Nasci no Quilombo do Campinho da
Independência, que fica em Paraty, no Rio de Janeiro. Tenho dezesseis anos e
moro com meus pais. Você deve achar esquisito receber uma carta de uma pessoa
que vive em 2025, mas logo você vai entender o que me aconteceu.
Alguns dias atrás , dormi e tive a sensação de ter acordado em outro lugar e
em outra época. Ouvi o canto dos pássaros, o vento batendo nas árvores e o som
do oceano. Vi homens e mulheres negros carregando pesadas caixas. Ouvi as
conversas deles e descobri que, dentro das caixas, havia muito ouro. Pensei: será
que voltei ao período colonial, quando havia escravizados e os portugueses
valorizavam muito a posse de metais preciosos? Quando virei para o lado, eu vi
você no meio daquelas pessoas. Tentei falar com você, mas você não me ouvia.
Percebi que nem olhava para mim. Eu estava invisível. Só ouvi alguém chamando
seu nome, era Dandara Nzinga.
Comecei a lhe seguir e parecia que eu estava dentro de um livro de história.
Eu vi você entrar em uma senzala e, logo em seguida, conversar sobre seus
sofrimentos com outros escravizados. Lágrimas grossas escorreram pelo seu rosto.
Suas lágrimas pareciam ter brotado em meus olhos também. Elas estavam
amarradas por fios invisíveis. Eu sentia sua dor. Éramos, naquele momento, a
mesma mulher. Senti como se fosse você. Fiquei atordoada e corri, gritando até o
porto para olhar o mar. Fiquei pensando em formas de voltar a minha realidade.
Consegui ver navios negreiros chegando, homens puxavam nosso povo por meio de
correntes. Logo em seguida, com muita raiva e repulsa, eu adormeci ali mesmo,
sentindo o gosto salgado das lágrimas em minha boca.
Depois de dois dias, eu voltei para o presente, não sei como e nem quando.
Então, eu pensei em escrever essa carta, caso eu a encontre de novo. Espero que
ela chegue até as suas mãos.
Após muito pensar no que iria falar para você, resolvi escrever como é a
minha vida no quilombo. Nós conservamos tradições dos nossos ancestrais
africanos, como danças, rezas e histórias. Por falar em dança, minha mãe
apresenta, aos turistas de nosso quilombo, músicas e canções africanas. Essa é
uma das formas que conseguimos dinheiro atualmente. Os descendentes de
africanos não são mais escravizados e, como você percebeu, minha mãe tem um
papel importante em nossa comunidade. Nosso quilombo é matriarcal, Dandara!
Veja! As mulheres tiveram conquistas, mesmo enfrentando ainda os vestígios da
sociedade patriarcal do período colonial, que você conheceu tão bem. Nossa
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